Este blog (sobre)viverá da aplicação do Direito ao caso concreto...

27 de novembro de 2015

Retribuição e mera tolerância: fronteira ténue?

De acordo com o Código do Trabalho, presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador. Assim, coloca-se a questão de saber quando é que uma determinada prestação (por ex., prémio, fundo de pensões, viatura ou telemóvel) constitui uma mera liberalidade ou tolerância fugindo à natureza jurídica retributiva ou salarial?
Retomamos hoje o acórdão que abordámos na passada semana, desta vez sob a vertente remuneratória (Acórdão do Supremo Tribunal de Lisboa de 26.5.2015 (Fernandes daSilva)).
Em alguns casos, as prestações complementares a cargo do empregador acabam por ser qualificadas como retribuição para todos os devidos efeitos, por força da verificação da presunção, atendendo à falta de prova em contrário (cfr., por ex., Acórdão da Relação de Lisboa de 29.2.2012 (Ferreira Marques)).
Vejamos a posição assumida no referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:
a) As contribuições feitas pelo empregador para um fundo de pensões não constituem retribuição, visto que não são feitas ao trabalhador, sendo este apenas titular de uma expectativa jurídica sobre a constituição de um direito às prestações quando se verificar o respetivo facto gerador (v.g., reforma);
b) O prémio anual cuja atribuição dependa, por exemplo, da avaliação da produtividade e do desempenho profissional do trabalhador não constitui retribuição, porque a necessidade de verificação destes fatores impede que a atribuição do prémio seja considerada antecipadamente garantida;
c) O uso pessoal de viatura de serviço tolerado pelo empregador (e.g., utilização nas férias e aos fins de semana) pode não constituir retribuição, desde que, por exemplo, existam regras que façam recair sobre o trabalhador os encargos da respetiva utilização privada da viatura; e
d) O uso de telemóvel e de internet para fins pessoais não constitui remuneração quando, por exemplo, existem regras de utilização destes instrumentos de trabalho e o trabalhador assume a obrigação de pagar o valor que exceda o plafond mensal. Neste caso, o eventual uso pessoal abrangido pelo limite quantitativo de utilização constitui, assim, mera liberalidade do empregador.
Em traços simples, poder-se-ia dizer que o contrato de trabalho consiste na troca de uma atividade pessoal por um salário, ou seja, numa alienação da força de trabalho com o objetivo de assegurar o sustento do próprio e da sua família. Embora esta noção não reflita, sequer, uma pequena parte da multiplicidade de situações jurídicas emergentes do trabalho subordinado, permite-nos assinalar a importância da certeza e segurança jurídicas a propósito da remuneração.
Face ao exposto, impõe-se um grande cuidado na elaboração de políticas internas sobre a utilização de instrumentos de trabalho ou de atribuição de complementos remuneratórios com o objetivo de reduzir o risco de litigiosidade laboral.

Nota 1: publicado no Jornal OJE no dia 9.7.2015

Nota 2: em co-autoria com Maria Paulo Rebelo

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