Este blog (sobre)viverá da aplicação do Direito ao caso concreto...

4 de dezembro de 2014

A videovigilância: método de controlo dos trabalhadores?

As tecnologias de geolocalização (GPS), de comunicação (e-mail) e de videovigilância colocam invariavelmente questões de proteção de dados pessoais e laborais. Vejamos, hoje, os reflexos laborais da videovigilância em alguns casos jurisprudenciais.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.2.2006 declarou – e bem – ilícita, por violação do direito de reserva da vida privada, a captação de imagem através de câmaras de videovigilância instaladas no local de trabalho e direcionadas para os trabalhadores, visto que, nesse caso, a atividade laboral estaria "sujeita a uma contínua e permanente observação".
No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.11.2011 foi admitido o visionamento das imagens captadas pelas câmaras de videovigilância para "confirmar a actuação ilícita do trabalhador que foi atentatória da finalidade de protecção de pessoas e bens" (desvio de bens do empregador). Neste caso, o sistema de videovigilância tinha sido autorizado pela Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD).
Em sentido semelhante, no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 9.11.2010 considerou-se que a proibição de utilização de meios de vigilância à distância no local de trabalho com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador não deve servir para proteger o comportamento do trabalhador atentatório da segurança de pessoas e bens. De facto "seria estranho que a videovigilância, instalada e utilizada para a proteção e segurança de pessoas e bens, não pudesse fundamentar uma actuação contra aqueles que, pelas funções que desempenham, mais poderão atentar contra as finalidades que a instalação visa defender".
Estes casos jurisprudenciais demonstram que a utilização de sistemas de videovigilância é um foco de conflito permanente entre dois direitos fundamentais: a reserva da vida privada do trabalhador e o direito de propriedade do empregador. A recusa pura e simples da videovigilância como meio de prova de ilícitos disciplinares parece-nos manifestamente excessiva, não sendo, por isso de acolher. Contudo, uma vez cumpridas as normas relativas à instalação do sistema e à captação e arquivo de informação – nomeadamente a autorização da CNPD e o respeito pelos princípios da finalidade e da proporcionalidade –, os nossos tribunais não poderão ignorar a realidade captada por meios de vigilância à distância.
Em suma, o trabalhador não pode estar permanentemente sob os "olhos e ouvidos do empregador", mas não deve ficar numa situação mais privilegiada do que qualquer outra pessoa que possa atentar contra a segurança de pessoas e bens.
 

Em coautoria com Inês Garcia Beato.


Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 2.12.2014.


Vide, em especial, as seguintes orientações da CNPD:





- Princípios sobre o tratamento de dados por videovigilância (2004)


Cessação de acordo de revogação do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador


De todas as formas de cessação de contrato de trabalho, a revogação por mútuo acordo é, por natureza, a mais "consensual" e pacífica. Assim, as partes – empregador e trabalhador – podem determinar o fim da relação de trabalho a qualquer momento, através de acordo escrito que pode ficar sujeito a reconhecimento presencial das assinaturas.
Na maior parte destes acordos resulta o pagamento de uma compensação pecuniária global do empregador ao trabalhador. Significa, pois, que nestes casos as partes entendem fazer cessar o contrato de trabalho mediante o pagamento do valor acordado.
No entanto, a celebração do acordo é irrevogável por parte do trabalhador?
Depende. Se a assinatura do trabalhador for objeto de reconhecimento presencial notarial, o acordo produz efeitos imediatos e irrevogáveis. Caso a assinatura não seja reconhecida, o trabalhador pode revogar o acordo até o 7.º dia posterior à data da sua celebração. Por outras palavras, nesta última situação, existe um direito de arrependimento durante aquele período de tempo que aproveita apenas ao trabalhador.
O que acontece, então, se o trabalhador revogar o acordo e não devolver a compensação pecuniária global já liquidada pelo empregador?
O Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão de 05.11.2014 fez uma abordagem a este tema. Assim, neste arresto, o Tribunal analisou os seguintes cenários:
a. O trabalhador quando promove a cessação do acordo de revogação do contrato de trabalho já recebeu o valor da compensação. Deste modo, tendo conhecimento desse facto, terá de devolver em simultâneo o montante recebido.
b. O trabalhador revoga o acordo, mas a compensação ainda não foi colocada à disposição por parte do empregador. Neste caso, tem apenas que apresentar a comunicação dentro do prazo.
c. O trabalhador comunicou atempadamente a cessação do acordo, mas a compensação é liquidada pelo empregador em data posterior. Nesta situação, o trabalhador tem de devolver os valores recebidos assim que tenha conhecimento da sua disponibilização.
Importa, pois, explicar que a obrigação de devolução do valor da compensação abrange somente os valores que o trabalhador recebeu por conta da cessação do contrato de trabalho e não aqueles a que sempre teria direito. Exemplo: Se o empregador pagou € 10.000,00 a título de compensação e proporcionais e € 1.000,00 por conta do último salário, então o trabalhador teria de devolver com a cessação do acordo a quantia de € 9.000,00. Os referidos € 1.000,00 não são devidos pelo mútuo acordo, mas pela prestação efetiva de trabalho. É um direito irrenunciável do trabalhador.
Em suma, a devolução do valor da compensação pecuniária global é um requisito de eficácia da cessação do acordo de revogação do contrato de trabalho por parte do trabalhador.


Em coautoria com Duarte Abrunhosa e Sousa.

Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 25.11.2014.

Sobre a questão da cessação do acordo de revogação, vide Ac. STJ 25.11.2014.

Ausência prolongada: suspensão e resolução do contrato de trabalho

O Supremo Tribunal de Justiça (Ac. STJ 8.10.2014) apreciou recentemente o seguinte caso:
Na sequência de um grave acidente de viação (fevereiro de 2008), o trabalhador ficou com uma incapacidade temporária para o trabalho prolongada. Após o decurso do prazo máximo de concessão do subsídio de doença (1095 dias), o trabalhador requereu a passagem à situação de reforma por invalidez, mas sem sucesso; de seguida, enviou uma carta ao empregador na qual manifestou a disponibilidade para retomar as suas funções (setembro de 2011). Tendo em conta a ausência prolongada ao trabalho por motivos de acidente, o empregador decidiu convocá-lo para uma avaliação pelo médico do trabalho, tendo indicado, sucessivamente, duas datas para a realização do exame de saúde. O trabalhador não compareceu em nenhuma das datas invocando dificuldades de deslocação, apesar de o empregador assegurar o pagamento das respetivas despesas. Menos de duas semanas depois de recusar a segunda deslocação, o trabalhador promove a resolução com justa causa do contrato de trabalho com fundamento na falta do pagamento pontual das remunerações e na violação do direito de ocupação efetiva (dezembro de 2011). Entre setembro e dezembro de 2011, a empregadora não pagou qualquer remuneração ao trabalhador, não lhe atribuiu funções nem disponibilizou instrumentos de trabalho, mas este também não se apresentou na sede da empregadora para regressar ao trabalho.
Segundo o tribunal, após uma ausência prolongada a mera comunicação de disponibilidade (ainda que condicionada) para regressar ao trabalho não é suficiente para faze cessar a suspensão do contrato de trabalho. Acresce que a lei impõe ao empregador o dever de realizar exames de saúde ocasionais nos casos de regresso ao trabalho depois de uma ausência superior a 30 dias por motivo de doença ou acidente.
Por outro lado, os motivos de recusa de deslocação aos exames médicos foram considerados injustificados. Nesse sentido, o comportamento do trabalhador impediu a demonstração e verificação da cessação do impedimento que determinara a suspensão do contrato de trabalho.
O tribunal considerou que a suspensão do contrato de trabalho não cessou com a mera manifestação de disponibilidade para regressar ao trabalho e que, por conseguinte, não se verificou qualquer violação dos direitos do trabalhador ao pagamento pontual da remuneração e à ocupação efetiva.
Em suma, a resolução do contrato de trabalho promovida pelo trabalhador foi declarada sem justa causa.
Para além da correção da decisão, cumpre-nos destacar a relevância dos exames de saúde periódicos e ocasionais para a vida laboral.


Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 18.11.2014.

Os turnos rotativos, o trabalho suplementar e o trabalho noturno

A remuneração dos trabalhadores contempla, em regra, a retribuição base e um subsídio de alimentação. São frequentemente atribuídas outras prestações remuneratórias, como por exemplo o subsídio de isenção de horário de trabalho, a remuneração pelo trabalho suplementar, o abono para falhas, o subsídio de prevenção ou piquete. Excecionalmente deparamo-nos, ainda, com o pagamento de diuturnidades, isto é, de uma prestação remuneratória com fundamento na antiguidade (figura em vias de extinção?).
Ora, o subsídio de turno destina-se a compensar a maior penosidade resultante da sujeição do trabalhador a jornadas de trabalho com início e termo variáveis (trabalho diurno e noturno, em diferentes dias da semana) suscetíveis de deslocar o dia de descanso semanal. Devemos ter presente que, todavia, o trabalho por turnos não impede a existência de trabalho suplementar, nomeadamente quando o trabalhador presta a sua atividade no seu dia de descanso semanal em substituição do domingo (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.10.1999).
Por outro lado, o pagamento do subsídio de turno exclui a obrigação de pagamento da prestação por trabalho noturno, visto que "a penosidade que geralmente se atribui ao trabalho noturno já está contemplada no âmbito da que é atribuída ao trabalho por turnos" (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02.11.2005).
Por fim, de acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.1.2007, "não tendo o trabalhador sido contratado expressamente para praticar determinado horário, a entidade empregadora pode retirá-lo do regime de trabalho em turnos rotativos em que vinha trabalhando e colocá-lo a trabalhar em regime de horário de trabalho fixo". Neste caso, o empregador pode deixar de pagar o subsídio de turnos, visto que o princípio da irredutibilidade da retribuição não abrange "as parcelas que estão associadas a situações de desempenho específicas (isenção de horário de trabalho, por ex.), a maior trabalho (prestação de trabalho suplementar) ou à prestação de trabalho em condições mais onerosas, em quantidade e esforço (por ex., trabalho por turnos ou noturno), ou a factos relacionados com a assiduidade do trabalhador, cujo pagamento não esteja antecipadamente garantido".
A gestão dos tempos de trabalho é um elemento muito importante na vida das empresas e dos trabalhadores, sendo, por isso, importante conhecer a legislação laboral e a sua concretização pelos nossos tribunais. A riqueza do dia-a-dia das empresas leva-nos a referir que a breve nota de casos jurisprudenciais não deve dispensar o estudo das circunstâncias do caso concreto.


Em coautoria com Inês Garcia Beato.


Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 11.11.2014.

O "Facebook" e as relações laborais: casos recentes


As redes sociais e a disseminação de "smartphones" transformaram a vida em sociedade. Se por um lado este mundo virtual tem as inegáveis vantagens de nos aproximar daqueles que estão longe e de permitir uma difusão rápida e em massa da informação, por outro pode constituir uma barreira ao mundo real (pense-se, por exemplo, nos jantares em que, a certa altura, os presentes decidem ver as novidades dos últimos minutos – ou segundos – nas redes socias).
Mais recentemente tem sido colocada a questão dos reflexos laborais deste mundo virtual. Será que as declarações de um trabalhador no "Facebook" ou noutra rede social podem constituir justa causa de despedimento, nomeadamente quando têm um conteúdo difamatório ou injurioso do empregador, do superior hierárquico ou de um colega?
Desde logo coloca-se a questão da confidencialidade das mensagens, da sua natureza pública ou privada. Para o efeito, os tribunais têm valorado, nomeadamente, os seguintes índices: (i) tipo de serviço onde a informação é divulgada ("perfil pessoal", "página" e "mural"); (ii) composição da rede social, número e características dos membros (em particular, o elo de ligação entre si e o grau de proximidade ao administrador da conta); (iii) matéria sobre a qual incidem as publicações (pessoal ou profissional) ou ainda; (iv) a política de privacidade adotada.
Os nossos tribunais têm sublinhado que o facto de a informação ser apenas partilhada entre os "amigos" não significa necessariamente que o "post" tenha natureza pessoal, tendo em conta o número efetivo ou potencial de utilizadores com acesso à informação e facilidade na transmissão e retransmissão (veja-se, nesse sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.09.2014).
É indiscutível que os trabalhadores têm direito à liberdade de expressão e de pensamento na empresa, visto que não deixam de ser pessoas durante a execução de um contrato de trabalho. Todavia, de acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 8.9.2014, "é inaceitável que a liberdade de expressão e de comunicação não tenha qualquer tipo de limites externos", nomeadamente os direitos de personalidade do empregador, incluindo os seus representantes, e dos demais colegas de trabalho, bem como o normal funcionamento da empresa.
Assim, o dever de o trabalhador tratar com urbanidade, probidade e respeito o empregador, os seus superiores hierárquicos e colegas de trabalho está igualmente presente no mundo virtual das redes sociais.


Em coautoria com Inês Garcia Beato.


Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 4.11.2014.

O novo salário mínimo nacional e a novíssima medida excecional de apoio ao emprego


A remuneração mínima mensal garantida (RMMG) – ou salário mínimo nacional – foi atualizada para o valor de € 505,00, a partir de 1.10.2014. Esta atualização produz igualmente efeitos nas prestações complementares que são calculadas sobre a remuneração base (v.g. subsídios de férias e de Natal e remuneração do trabalho suplementar).
O aumento da RMMG tem, igualmente, efeitos reflexos nos seguros de acidentes de trabalho, visto que a seguradora só responde em relação à remuneração declarada para efeito do prémio de seguro, a qual não pode ser inferior à RMMG.
De referir que se a remuneração real (v.g. remuneração base e prestações regulares) for superior, o empregador responderá pessoalmente pela diferença relativa às indemnizações por incapacidade temporária e pensões devidas, bem como pelas despesas efetuadas com a hospitalização e assistência clínica, na respetiva proporção.
Por isso, independentemente da questão do aumento da RMMG, é aconselhável que o empregador reveja periodicamente a conformidade entre a remuneração real e a remuneração declarada para efeitos do seguro de acidentes de trabalho, sob pena de ser "surpreendido" com responsabilidade civil emergente de eventos infortunosos de carácter laboral.
Para fazer face ao aumento dos custos associados à atualização da RMMG foi recentemente aprovada uma medida excecional de apoio ao emprego que se traduz na redução em 0,75 pontos percentuais da taxa contributiva a cargo do empregador, relativamente às contribuições referentes às remunerações devidas nos meses de novembro de 2014 a janeiro de 2016, nas quais se incluem os valores devidos a título de subsídios de férias e de Natal. Esta redução é concedida oficiosamente pelos serviços de segurança social, salvo no caso de trabalhadores com contrato de trabalho a tempo parcial.
O direito à redução da taxa contributiva depende da verificação cumulativa das seguintes condições: a) o trabalhador estar vinculado ao empregador beneficiário por contrato de trabalho sem interrupção pelo menos desde maio de 2014; b) o trabalhador ter auferido, pelo menos num dos meses compreendidos entre janeiro e agosto de 2014, remuneração igual ao valor da RMMG; e c) o empregador ter a sua situação contributiva regularizada perante a segurança social.


Em coautoria com Inês Garcia Beato.


Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 28.10.2014.

A união de facto e o regime laboral de justificação de faltas

No cumprimento do contrato de trabalho, as partes devem proceder de boa-fé, competindo ao empregador, nomeadamente, proporcionar boas condições de trabalho e pagar pontualmente a retribuição e ao trabalhador, por exemplo, comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade e realizar o trabalho com zelo e diligência.
O absentismo laboral é um dos problemas que se coloca frequentemente. De acordo com o Código do Trabalho, considera-se falta a ausência de trabalhador do local em que devia desempenhar a atividade durante o período normal de trabalho (por exemplo, 8 horas por dia).
Os atrasos são igualmente perturbadores do normal funcionamento da organização. Assim, se o atraso for superior a 60 minutos para início do trabalho diário, o empregador pode não aceitar a prestação de trabalho durante todo o período normal de trabalho; por seu lado, se o atraso for superior a 30 minutos para início do trabalho diário, o empregador pode não aceitar a prestação de trabalho durante essa parte do período normal de trabalho (por exemplo, na parte da manhã até à pausa para o almoço). Nesse caso, a ausência será qualificada como falta injustificada.
As faltas injustificadas determinam a perda da retribuição, não são contadas na antiguidade do trabalhador e podem determinar a aplicação de sanções disciplinares, designadamente o despedimento.
O legislador consagra um conjunto amplo de causas justificativas das ausências. Entre elas, contam-se as faltas por motivo de falecimento de cônjuge, parente ou afim. Nesse caso, o trabalhador pode faltar justificadamente: (i) até 5 dias consecutivos, por falecimento de cônjuge não separado de pessoas e bens ou de parente ou afim no 1.º grau da linha reta (pais, sogros, filhos e adotados); e (ii) até 2 dias consecutivos, por falecimento de outro parente ou fim da linha reta (avós, bisavós, netos, bisnetos) ou no 2.º grau da linha colateral (irmãos, cunhados).
As pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na lei têm direito a beneficiar de regime jurídico equiparado ao aplicável a pessoas casadas vinculadas por contrato de trabalho, em matéria de férias, feriados, faltas e licenças.
Sobre esta questão pronunciou-se o Tribunal da Relação do Porto no Acórdão de 6.10.2014. No caso em apreço, o trabalhador faltou 3 dias e meio com fundamento no falecimento do pai da sua companheira, com a qual vivia em união de facto há cerca de 13 anos e da qual tinha uma filha com 12 anos de idade. O tribunal considerou as faltas injustificadas, mas desvalorizou a relevância disciplinar do comportamento do trabalhador "atenta a equiparação das situações de união de facto à dos cônjuges, seja decorrentes da lei (…), seja até de um sentimento social que vai generalizando, incluindo quanto à utilização nas uniões de facto de denominações próprias das relações de parentesco ou afinidade decorrentes do casamento".


Em coautoria com Inês Garcia Beato.


Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 21.10.2014.

Assédio moral, constrangimento profissional ou conflito laboral?

Enquanto relações interpessoais, as relações laborais são vulneráveis a conflitos.

Nesse âmbito, não raro o trabalhador reclama o reconhecimento judicial de situações que qualifica de assédio moral ("mobbing"), peticionando o pagamento de avultadas indemnizações a título de danos morais.

Não obstante, os tribunais concluem amiúde que tais situações correspondem ao regular exercício do poder de direção do empregador, dentro dos limites da lei e do contrato, enquanto corolário da gestão normal do funcionamento da empresa.

Devemos referir que o assédio moral consiste no comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.

A jurisprudência portuguesa tem distinguido o assédio moral de situações que constituem simples constrangimentos profissionais resultantes de decisões legítimas advenientes da organização no trabalho.

A título de exemplo, os tribunais têm entendido que as seguintes situações não constituem, necessariamente, assédio moral: (i) a alteração dos projetos cometidos ao trabalhador, ditada por razões de ordem empresarial; (ii) oferta de cabazes de Natal aos trabalhadores que registam um maior volume de faturação; (iii) a redefinição ou alteração do local de trabalho, norteada por critérios de gestão empresarial (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.04.2010); (iv) a supressão do regime de isenção de horário de trabalho e da respetiva retribuição (salvo se constituiu elemento essencial para o trabalhador aquando da celebração do contrato); (v) a imposição de uso de viatura automóvel para fins estritamente profissionais ou; (vi) as avaliações de desempenho (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26.09.2011).

Podem, porventura, ocorrer situações nas quais a conduta do empregador constitui violação de um dever legal ou contratual (por exemplo, violação do dever de urbanidade), sem que se verifique, necessariamente, uma conduta persecutória intencional do empregador que configure uma situação de assédio.

Por outro lado, a existência de tensão entre o trabalhador e o empregador não corresponde necessariamente a um comportamento de assédio moral.

É atualmente pacífico que o "mobbing" não se confunde com conflitos existentes nas organizações empresariais, nomeadamente, quadros de sintomatologia de "stress" associadas a especiais circunstâncias (como cargos de grande responsabilidade), conflitos interpessoais, agressões ocasionais não premeditadas, condições de trabalho (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7.03.2013) ou a existência de uma relação profissional dura, pelo facto de a chefia ser muito exigente e pouco cordata (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26.09.2011).

Importa não esquecer que o poder do empregador de determinar, dirigir e orientar a atividade laboral tem fundamento constitucional na liberdade de iniciativa económica, mas encontra-se necessariamente condicionado pela força vinculante dos direitos fundamentais do trabalhador.

Em coautoria com Inês Garcia Beato.



Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 14.10.2014.

As federações desportivas e as profissões

As federações desportivas são associações sem fins lucrativos que, entre outras finalidades, visam promover, regulamentar e dirigir a nível nacional a prática de uma modalidade desportiva ou de um conjunto de modalidades afins ou associadas. Estas entidades podem obter o estatuto de pessoa coletiva de utilidade pública desportiva, o qual confere a competência para o exercício, em exclusivo, por modalidade ou conjunto de modalidades, de poderes (públicos) regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública (v.g. a regulamentação dos quadros competitivos da modalidade, a atribuição de títulos nacionais e o exercício da ação disciplinar sobre todos os agentes desportivos sob a sua jurisdição).
Dir-se-ia, à primeira vista, que as federações desportivas não têm qualquer relação com o acesso e exercício de profissões, visto que tratam de matérias essencialmente desportivas. Todavia, encontramos neste sector de atividade – com uma relevância económica, financeira e mediática muito significativa – diversos profissionais: praticantes, técnicos, dirigentes, agentes e árbitros. Podíamos dizer que estas pessoas não exercem profissões e que se dedicam ao associativismo desportivo e à prática desportiva por "hobby" ou paixão. Não podemos negar, porém, a existência de profissões no desporto – não escondemos que seja um tema sensível atendendo à especificidade da "lex sportiva" – e, a partir desse momento, por razões constitucionais, temos de estar atentos às restrições ao acesso e exercício das profissões.
A Constituição da República Portuguesa consagra a liberdade fundamental de livre escolha da profissão (art. 47.º); assim as restrições ou os condicionamentos de acesso, de exercício e de permanência na profissão (v.g., qualificações profissionais necessárias, regimes de incompatibilidades, sanções disciplinares, entre outros) devem observar a reserva de lei, isto é, devem constar de lei da Assembleia da República ou de decreto-lei do Governo previamente autorizado pela Assembleia da República.
Uma das alterações introduzidas recentemente no regime jurídico das federações desportivas consistiu na reformulação das normas relativas aos conselhos de disciplina e justiça para impor uma maioria de licenciados em direito, visto que, como (bem) reconhece o legislador no preâmbulo do diploma, trata-se de "matéria de acrescida relevância no exercício de poderes públicos: o exercício do poder disciplinar".
Esta preocupação deveria ter encontrado tradução também num esforço de tipificação das sanções admissíveis e dos limites sancionatórios (em especial no caso de sanções impeditivas do exercício da profissão). Este tipo de matérias, salvo melhor opinião, bule diretamente com o núcleo essencial da liberdade fundamental de acesso e exercício da profissão.
Nesse sentido, temos sérias dúvidas sobre a validade de um regime jurídico – aprovado por uma associação privada – que consagra a sanção de exclusão das competições profissionais dos árbitros, árbitros assistentes, observadores de árbitros e delegados da Liga (veja-se o Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa Futebol Profissional). A competência para exercer o poder (público) disciplinar não deverá incluir a possibilidade de criar sanções impeditivas do exercício de uma profissão, ainda que secundária, ao sabor de maiorias conjunturais no seio de associações privadas. Ao invés de excluir apenas as sanções de irradiação ou de duração indeterminada, o legislador podia ter consagrado, pelo menos, um catálogo de sanções e previsto a possibilidade de reabilitação. No desporto, uma sanção de suspensão da atividade por 10 anos pode equivaler ao fim da carreira profissional e, no entanto, cumpre o limite previsto no regime jurídico das federações desportivas (o qual é, aliás, um decreto-lei sem lei de autorização legislativa).


Em coautoria com João Lobão.
Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 7.10.2014.

Novo Salário Mínimo Nacional


Em 2006 a RMMG tinha o valor de €385,90. Nesse ano, foi celebrado um acordo de concertação social que previa o aumento faseado da RMMG: (i) 2007: €403,00; (ii) 2009: €450,00; e (iii) 2011: €500,00. Apenas no último trimestre de 2014 foi ultrapassada a barreira dos €500,00.
Antevê-se que o aumento da RMMG constitua um argumento de negociação coletiva para a revisão das tabelas salariais das convenções coletivas de trabalho, na medida em que se reduzem (ou eliminam) as diferenças remuneratórias entre categorias profissionais. Nesse sentido, a "revisão em alta" da RMMG conduz à subida do nível salarial global e, por esse motivo, vários autores alertaram, nos últimos meses, para o risco do aumento do desemprego. Esperemos que este vaticínio não se concretize.
O diploma em apreço levanta uma questão: se o valor de €505,00 vigora apenas entre 1.10.2014 e 31.12.2015 e se os sucessivos diplomas que regulam a RMMG revogaram (sempre) os seus antecessores, o que sucederá se, até 31.12.2015, não for aprovado outro valor de RMMG? Deixa de haver RMMG?
Esta questão será naturalmente debatida na comissão tripartida com representantes do Governo e dos Parceiros Sociais com assento na Comissão Permanente de Concertação Social. O objetivo desta comissão será a definição dos critérios para as futuras atualizações da RMMG, tendo em conta a produtividade, a competitividade e a política de rendimentos e de preços. Aguardemos pelos resultados.
Uma última nota. O aumento da RMMG deverá ser compensado com uma diminuição temporária de 0,75% da taxa contributiva global (também conhecida por "taxa social única"). De referir que até à data – e hora – em que escrevemos estas breves linhas, não tinha sido ainda publicado em Diário da República este regime complementar ao aumento da RMMG.


Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 1.10.2014.

A colocação de jogadores na equipa B: ato de gestão desportiva ou perseguição?

A colocação de jogadores na equipa B: ato de gestão desportiva ou perseguição?
Surgem, frequentemente, notícias de jogadores de futebol que, após não aceitarem determinada "orientação" ou "proposta" do empregador (por exemplo, para reduzir substancialmente o salário, terminar o seu vinculo exonerando o clube das responsabilidades contratuais assumidas ou para aceitar a transferência para o Clube X), são "colocados a treinar" com a equipa B, outros não são inscritos na Liga Profissional de Futebol e outros ainda são colocados a treinar à margem do grupo normal de trabalho. Estas decisões são vistas pelos adeptos dos clubes como "castigos normais" para quem não cumpre "as regras do Clube". Olhemos para esta questão sob uma perspectiva "menos apaixonada".
Em primeiro lugar, cumpre afastar a ideia do "castigo normal". Por um lado, a recusa de redução do salário ou de aceitar a transferência para o Clube X não constituem ilícitos disciplinares aos quais seja aplicável uma sanção disciplinar. Por outro lado, não ignorando que qualquer sanção disciplinar deve ser precedida de um procedimento disciplinar no qual sejam garantidas ao arguido as adequadas garantias de defesa, a "pena" aplicada ao jogador deve-se circunscrever ao rol de sanções previstas no Regime Jurídico do Contrato de Trabalho Desportivo e do Contrato de Formação Desportiva e no Contrato Colectivo de Trabalho.
Em segundo lugar, cabe colocar a questão de saber se aqueles comportamentos podem ser qualificados como assédio.
As equipas B nascem da necessidade de proporcionar condições favoráveis aos jovens jogadores para se afirmarem num patamar competitivo superior, assumindo, desse modo, um cariz essencialmente formativo (cfr, por exemplo, o Regulamento de Competições Profissionais de Futebol da Liga Portuguesa de Futebol Profissional).
Será, assim, admissível a colocação nas equipas B de jogadores de futebol, internacionais pelos seus países e com vários anos de experiência?
O Supremo Tribunal Federal suíço ("Schweizerisches Bundesgericht") considerou legítima a resolução do contrato de trabalho com justa causa promovida pelo jogador na sequência da sua colocação na equipa sub-21 (equivalente à equipa B), na medida em que contrariava o espirito subjacente à sua contratação, bem como as fundadas ambições do jogador. Neste acórdão, reconhece-se a importância da disciplina numa equipa de futebol no âmbito das competições profissionais; mas não se olvida que o trabalhador tem um interesse legítimo em prestar a sua actividade profissional, sob pena de se desvalorizar e de colocar em risco o seu futuro profissional. No caso, um jogador de futebol profissional de primeira divisão deve treinar regularmente com os jogadores do seu nível e disputar os jogos com as equipas de nível mais elevado. De outro modo colocará em causa o seu valor e futuro profissionais (caso Eddy Barea / Neuchâtel Xamax (2011)).
Todavia, devemos referir que, em determinados casos, a colocação de jogadores na equipa B pode ser justificada por razões de ordem técnica ou táctica (por exemplo, a recuperação de um jogador vindo de uma lesão prolongada com o intuito de mais rapidamente adquirir o seu ritmo competitivo).


Em coautoria com João Lobão.


Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 30.9.2014

O contrato de estágio: uma janela de oportunidade?


Portugal tem registado uma redução progressiva da taxa de desemprego, embora esta se mantenha ainda elevada (segundo o Instituto Nacional de Estatística: 17,5% no 1.º trimestre de 2013 e 13,9% no 2.º trimestre de 2014). Este facto pode resultar da combinação de diversos fatores como (i) o aumento da emigração, (ii) o crescimento do PIB, (iii) a maior flexibilidade da legislação laboral e (iv) a redução do valor real dos salários.
No que toca à flexibilidade da legislação laboral deve referir-se que a Reforma Laboral de 2011-2012 permitiu a Portugal descer significativamente no índice de rigidez da legislação do trabalho, organizado pela OCDE (ainda que mantenha uma posição de liderança); por outro lado, existem vários instrumentos que visam promover a entrada – ou reentrada – no mercado de trabalho.
O Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) é responsável por um amplo catálogo de políticas ativas de apoio à contratação, nomeadamente (i) o Estímulo Emprego, (ii) o Incentivo Emprego e (iii) os Estágios Emprego.
Por outro lado, o Código do Trabalho permite a celebração de contratos de trabalho a termo certo com fundamento na contratação de pessoa à procura de primeiro emprego (duração máxima de 18 meses).
Por fim, cumpre referir o – por vezes esquecido – contrato de estágio, o qual consiste na formação prática em contexto de trabalho, com o objetivo de complementar e aperfeiçoar as competências do estagiário e, desse modo, potenciar a sua inserção ou reconversão profissional.
Este contrato pode ter uma duração máxima de 12 meses e confere ao estagiário o direito a (i) subsídio de estágio com um valor mínimo de € 419,22 (corresponde ao indexante dos apoios sociais (IAS) para 2014), a (ii) subsídio de refeição ou a refeição fornecida pela entidade promotora do estágio e a (iii) seguro de acidentes pessoais. Nos estágios com uma duração de até 3 meses pode ser dispensado o subsídio de estágio. Opcionalmente, o estagiário pode inscrever-se no Seguro Social Voluntário.
Há, no entanto, que tomar atenção a alguns aspetos: (i) o contrato de estágio deve ser celebrado por escrito, (ii) a entidade promotora do estágio deve designar um orientador de estágio, que não pode acompanhar mais de 3 estagiários, e (iii) o orientador deve elaborar o plano individual de estágio, realizar o acompanhamento técnico e pedagógico do estagiário e avaliar os resultados obtidos. O não cumprimento do regime jurídico pode tornar o estagiário num trabalhador efetivo da empresa.
Uma última questão: após o estágio pode ser celebrado um contrato de trabalho a termo? Sim, desde que sejam cumpridos os requisitos relativos ao contrato de trabalho a termo, visto que o contrato de estágio não configura uma relação laboral e tem finalidades distintas às do contrato de trabalho.


Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 23.9.2014.


Vide, por exemplo, Lei n.º 53/2011 e Lei n.º 23/2012.






31 de julho de 2014

Recurso de revista excecional

Neste Ac. TC n.º 548/2014 (Maria José Rangel Mesquita), o TC decidiu julgar inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo, consagrado no art. 20.º, n.º 4, da CRP, a norma constante do art. 721º-A, n.º 2, c), do CPC (atual art. 672.º, n.º2, al. c), do nCPC), interpretado no sentido de que no recurso de revista excecional cabe ao recorrente juntar certidão do acórdão-fundamento, com o requerimento de interposição de recurso, sob pena deste ser liminarmente rejeitado.
De acordo com o TC:
A questão de constitucionalidade objeto do presente recurso foi já apreciada por este Tribunal, no Acórdão n.º 620/2013 e, também, nas Decisões Sumárias n.º 564/2013 e n.º 747/2013 (disponíveis em http://www.tribconstitucional.pt).
O Acórdão n.º 620/2013 decidiu «(…) julgar inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, a norma constante do artigo 721º-A, n.º 1, c), e n.º 2, c), do Código de Processo Civil, interpretado no sentido de que no recurso de revista excecional cabe ao recorrente juntar certidão do acórdão-fundamento, com o requerimento de interposição de recurso, sob pena deste ser liminarmente rejeitado (…) (cfr. Decisão, a)). As Decisões Sumárias nº 564/2013 e n.º 747/2013 decidiram em sentido idêntico (cfr. Decisão, alínea a)).
Afigura-se que este entendimento se aplica ao caso vertente, não obstante o pedido se circunscrever, in casu, à interpretação da alínea c) do n.º 2 do artigo 721.º-A do Código de Processo Civil (de 1961), pelo que, pelas razões invocadas na fundamentação daquele Acórdão, e para as quais se remete, se deve formular idêntico juízo de inconstitucionalidade.

30 de julho de 2014

Reapreciação de prova gravada pelo STJ


a) Não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do nCPC (Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), na interpretação de que é proibida a reapreciação da prova gravada pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos casos em que a decisão da Relação incide sobre matéria fáctica nova, contra a qual a Recorrente não pôde produzir prova;

b) Não julgar inconstitucional a norma constante do no artigo 80.º, n.º 3, do CPT, na interpretação de que o alargamento do prazo de recurso encontra-se excluído do campo de aplicação do recurso de revista.

Com efeito, tendo em conta a norma paramétríca do direito de acessso aos tribunais (art. 20.º, n.º1, da CRP), o TC afirmou o seguinte:


É jurisprudência firme e abundante do Tribunal Constitucional que o direito de acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. A existência de limitações à recorribilidade funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema judiciário, decorrente da chegada de todas ou de uma larga maioria das ações aos diversos "patamares" de recurso.

Na verdade, no plano constitucional processual civil não se encontra expressamente consagrada qualquer norma sobre recursos. Porém, são vários os preceitos constitucionais dos quais se pode retirar uma consagração implícita do direito ao recurso, nomeadamente aqueles que se referem ao Supremo Tribunal de Justiça e aos Tribunais judiciais de primeira e segunda instância (artigos 209.º, n.º 1, a), e 210.º, n.º 1, 3, 4 e 5). Desta previsão constitucional de tribunais de diferente hierarquia resulta que o legislador ordinário não pode eliminar, pura e simplesmente, a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, na medida em que tal eliminação global dos recursos esvaziaria de qualquer sentido prático a competência dos tribunais superiores e deixaria sem conteúdo útil a sua previsão constitucional.

E na definição do regime de recursos não deixa o legislador ordinário de estar limitado pelas diretrizes do direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, no qual se refletirão os princípios estruturantes de um Estado de direito democrático, como sejam os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da proteção da confiança.

Para além destas limitações, o legislador ordinário dispõe de uma ampla margem de liberdade na conformação do direito ao recurso em processo civil e laboral.

Assim, como já se referiu em anteriores arestos deste Tribunal (v.g. Acórdãos n.º 390/2004, 659/11, 194/12 e 399/13, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), não é necessário o recurso para um tribunal superior nos casos em que um tribunal já de recurso se pronuncie, pela primeira vez, sobre questões que possam influir na decisão da causa ou naquelas situações em que ao proferir a decisão, incorra na violação de lei processual ou procedimental que seja sancionada com o estigma da nulidade.


É claro que o legislador poderia, na sua discricionariedade legislativa, admitir esse recurso, mas a sua inadmissibilidade não será constitucionalmente intolerável. (sublinhados nossos)

Este entendimento permite assegurar ao STJ a análise das questões de direito.

Assim:


No nosso sistema de recursos em processo civil, o qual se aplica subsidiariamente ao processo laboral, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça está em princípio reservada ao conhecimento da matéria de direito, funcionando como última instância de controle da fixação da matéria de facto os Tribunais da Relação.

A interpretação normativa segundo a qual é proibida a reapreciação da prova gravada pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos casos em que a decisão da Relação incide sobre matéria fáctica nova, contra a qual a Recorrente não pôde produzir prova, insere-se naquela orientação de reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça às questões de direito, encontrando-se dentro da margem que o legislador dispõe de conformar o direito ao recurso, sendo certo que não deixa de se encontrar assegurado o direito das partes reagirem quando os tribunais conheçam de questões de que não podiam tomar conhecimento, designadamente em matéria de facto, através da arguição de nulidades perante o tribunal a quem é imputado o seu cometimento (artigo 615.º, n.º 1, c), aplicável aos acórdãos dos Tribunais da Relação, por remissão do artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Assim, pelas razões indicadas, se conclui que tal solução não viola o direito de acesso aos tribunais, não se vislumbrando também que viole qualquer diretriz do direito a um processo equitativo, não fazendo qualquer sentido a convocação dos princípios da igualdade e da intangibilidade do caso julgado na fiscalização da constitucionalidade da norma sub iudicio.

Em suma, o TC validou a proibição de reapreciação da prova gravada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

29 de julho de 2014

O exercício da profissão e as liberdade de religião, de consciência e de culto: a jurisprudência recente do TC

No Ac. TC n.º 545/2014 (Fernandes Cadilha), o TC apreciou o direito de dispensa da realização dos turnos de serviço urgente que coincidam com os dias de sábado, com fundamento no facto de o trabalhador ser membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia e encontrar-se obrigado, por motivos religiosos, a guardar o sábado como dia de descanso, adoração e ministério e abster-se de todo o trabalho secular.
Os funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas, bem como os trabalhadores em regime de contrato de trabalho, têm o direito de, a seu pedido, suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam, nas seguintes condições:
a) Trabalharem em regime de flexibilidade de horário;
b) Serem membros de igreja ou comunidade religiosa inscrita que enviou no ano anterior ao membro do Governo competente em razão da matéria a indicação dos referidos dias e períodos horários no ano em curso;
c) Haver compensação integral do respectivo período de trabalho.
Por seu lado, o art. 41.º da CRP dispõe o seguinte:
1 - A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável.
2 - Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa.
3 - Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.
4 - As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.
5 - É garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticada no âmbito da respectiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas atividades.
6 - É garantido o direito à objeção de consciência, nos termos da Lei.
Como bem refere o TC, verifica-se uma situação de conflito entre o direito de guarda pra o exercício da religião durante certo período de tempo e o cumprimento dos deveres laborais no âmbito de uma relação de trabalho subordinado.
Segundo o TC, a referência a trabalho "em regime de flexibilidade de horário (art. 14.º, n.º1, al. a), da LLR) não é diretamente reconduzível a uma modalidade específica de horário de trabalho, nem corresponde ao significado técnico-jurídico de horário flexível que o legislador adota noutros lugares do sistema e para outros efeitos legais, e possui antes um alcance mais abrangente que carece de ser definido e caracterizado em função do caso concreto.
O TC vai mais longe e considera o trabalho por turnos como um regime de flexibilidade, visto que pela sua própria natureza e razão de ser, esse tipo de trabalho está sujeito a um critério de rotatividade e uma variação regular do respectivo pessoal.
Mais: O que interessa considerar, para o efeito previsto na referida disposição legal, é que o regime de trabalho relativamente ao qual se requer a dispensa por motivo religioso poderá ser globalmente organizado de modo variável, permitindo a mutação de posições entre os diversos interessados.
Temos muitas dúvidas sobre este entendimento. Parece-nos, salvo melhor opinião, que o TC desconsiderou a diversas modalidades de trabalho por turnos (fixo, rotativo, contínuo e descontínuo). Ora, no trabalho por turnos fixos não há qualquer flexibilidade, rotatividade ou adaptabilidade.
Por outro lado e apesar de a LLR consagrar como requisito a compensação integral do respetivo período de trabalho, o TC sustentou o seguinte:
Não sendo materialmente possível efectuar a compensação de todos os turnos a realizar aos sábados com outros períodos horários de serviço urgente em dias que não recaiam num sábado ou durante as férias judiciais, nada impede que a dispensa do trabalho seja concedida pelo número de dias que seja possível compensar.
Mais: a impossibilidade de satisfazer total ou parcialmente a condição estipulada na alínea c) do n.º 1 do artigo 14.º, não descaracteriza a natureza variável e rotativa do trabalho por turnos e não dispensa o órgão dirigente de obter uma solução de gestão do pessoal que seja consentânea com o exercício de um direito constitucionalmente garantido.
O TC sustentou, ainda, que a inclusão do trabalho por turnos no conceito de "regime de flexibilidade de horário" é a única interpretação que se mostra ser conforme à Constituição.
Pois bem, para o TC, parece claro que o legislador, ao referir-se ao trabalho em regime de flexibilidade de horário, não está a reportar-se apenas às situações em que os trabalhadores possam gerir os seus tempos de trabalho escolhendo as horas de entrada e de saída, mas também a todas aquelas em que seja possível compatibilizar o cumprimento da duração do trabalho com a dispensa para efeitos da observância dos deveres religiosos. O que parece ser decisivo, face à exigência constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 14.º, é que o regime de horário de trabalho aplicável possa permitir a compensação dos períodos de trabalho em que tenha ocorrido a suspensão.
Nada obsta, por conseguinte, que no regime de flexibilidade de horário se possam integrar, para além do trabalho por turnos, a que já se fez referência, os horários desfasados, que permitem estabelecer para determinados grupos de pessoal horas fixas diferentes de entrada e de saída, a jornada continua, que permite a concentração da prestação do trabalho num dos períodos do dia, bem como todas as situações de não sujeição a horário de trabalho ou de isenção de horário de trabalho. Para além de que os dirigentes dos serviços poderão fixar horários específicos, não apenas nos casos referidos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de Agosto (destinados a trabalhadores-estudantes ou a permitir acompanhamento de menores ou portadores de deficiência), mas também sempre que «outras circunstâncias relevantes, devidamente fundamentadas, o justifiquem» (n.º 3), o que seguramente poderá ocorrer quando se trate do exercício do direito de liberdade religiosa. (sublinhados nossos)
Não estamos seguros que este entendimento maximalista de "regime de flexibilidade de horário" seja o mais adequado. Se o critério for a suscetibilidade de compensação dos períodos de trabalho em que tenha ocorrido a suspensão, o critério da al. a) do n.º1 do art. 14.º da LLR perde razão de ser - fica esvaziado de conteúdo - porque, no limite, o empregador seria obrigado a aceitar uma alteração do horário de trabalho, desde que o período de funcionamento da "empresa" pudesse acomodar a referida compensação.
Ainda que esse entendimento possa prevalecer contra o "empregador público", temos dúvidas que possa ser imposto ao "empregador privado", tendo em conta a liberdade de iniciativa económica (art. 61.º, n.º1, da CRP). Todavia, caso seja aceite tal distinção, o TC terá uma boa oportunidade para desenvolver a sua tese de proteção do trabalhador do setor público em futuros arestos.

Sobre esta questão podem ser, ainda, consultados os seguintes Acórdãos:
- Ac. TCAN 8.2.2007 (Medeiros de Carvalho) proc. n.º 01394/06.0BEPRT.

24 de julho de 2014

O Direito do Trabalho em Espanha e em Portugal nos anos da crise (2011-2014)

O Direito do Trabalho está a mudar. Portugal e Espanha têm registado taxas de desemprego de proporções históricas e passam, atualmente, por um processo de Reformas Laborais particularmente intensas com o objetivo de aumentar a flexibilidade do mercado de trabalho e fomentar a competitividade empresarial.

Propomo-nos sintetizar os aspetos fundamentais das Reformas Laborais implementadas nos últimos anos. Não obstante as diferentes opções de política legislativa, podem ser identificadas algumas tendências transversais.

Espanha

Introduziram-se alterações nas modalidades e regimes contratuais visando a criação de emprego, tendo em conta três linhas de atuação: a) fomento da contratação em geral; b) promoção do emprego jovem, especialmente afetado pelo desemprego; c) aposta em emprego por tempo indeterminado com o objetivo de reduzir os elevados índices de temporalidade.

Assim, ampliou-se a possibilidade de utilização do contrato de aprendizagem; criou-se uma nova modalidade contratual por tempo indeterminado que tem como virtualidade principal a consagração de um período experimental de um ano ("contrato de trabalho de apoio aos empreendedores"); e regulou-se o trabalho à distância.

Por outro lado, para flexibilizar a gestão dos recursos humanos foram, por exemplo, acelerados, ampliados e facilitados os mecanismos – que já existiam – para que o empregador, na falta de acordo do trabalhador, possa introduzir modificações substanciais nas suas condições de trabalho. A Reforma consagrou, ainda, a distribuição irregular de até 10% da jornada de trabalho e potenciou as possibilidades de suspensão do contrato de trabalho e de redução da jornada laboral por causas relativas ao funcionamento da empresa.

A cessação do contrato de trabalho foi igualmente alvo de atenção do legislador, sendo de salientar a supressão da autorização administrativa que era exigida nos despedimentos coletivos e a maior concretização dada ao conceito de situação económica negativa que o deve justificar.

Por último reformou-se amplamente o sistema de negociação coletiva. Assim, confere-se mais força aos acordos de empresa do que aos contratos coletivos de trabalho sectoriais, prevêem-se mecanismos que permitem ao empregador não aplicar grande parte do seu conteúdo e promove-se a permanente renegociação das cláusulas para evitar a sua petrificação.

Portugal

Em matéria de contrato de trabalho e de flexibilidade interna, salientamos (i) a criação do banco de horas individual, por acordo entre o empregador e o trabalhador (aumento da jornada de trabalho até 2 horas por dia, 50 horas por semana, com um limite anual de 150 horas); (ii) a consagração do banco de horas grupal como mecanismo de extensão do banco de horas consagrado em convenção coletiva de trabalho ou em contrato de trabalho; (iii) a eliminação de descansos compensatórios em caso de trabalho suplementar e a redução do valor pago pelo trabalho suplementar; (iv) a supressão de quatro feriados e da majoração do período anual de férias.

A Reforma procurou, por um lado, manter os postos de trabalho, ainda que temporários, através de um regime extraordinário de renovação dos contratos de trabalho a termo e dos contratos de trabalho temporário; e por outro lado, procedeu a uma redistribuição do rendimento anual, através do pagamento em duodécimos de parte dos subsídios de férias e de Natal.

No procedimento de suspensão ou de redução de laboração em regime de crise empresarial foi reforçado o dever de informação do empregador sobre a situação económica e financeira da empresa, foram reduzidos os prazos de decisão do empregador e de aplicação da medida e promoveu-se a admissibilidade de prorrogação desta medida, mediante comunicação do empregador.

Em matéria de cessação do contrato de trabalho, verificou-se uma redução progressiva do valor das compensações devidas nos casos de caducidade e de despedimento por motivos objetivos (de um máximo de um mês por ano de antiguidade para 18 e 12 dias por ano de antiguidade, consoante os casos). Para garantia do pagamento destas compensações foram criados o fundo de compensação do trabalho (capitalização individual) e o fundo de garantia de compensação do trabalho (mutualista).

Por outro lado, na extinção de posto de trabalho substituiu-se a regra da antiguidade por uma ordem de cinco critérios com prevalência para a avaliação de desempenho. Permite-se, ainda, o despedimento por inadaptação sem modificações no posto de trabalho.

Em matéria de negociação coletiva, admite-se que nas empresas com pelo menos 150 trabalhadores os sindicatos possam conferir às estruturas de representação coletiva poderes para celebrar convenções coletivas.

Mais recentemente, encontram-se em discussão na Assembleia da República duas novas propostas legislativas: (i) a redução dos prazos de sobrevigência e de caducidade das convenções coletivas com vista a promover a negociação coletiva; e (ii) a suspensão total ou parcial da convenção coletiva em situação de crise empresarial.

O Direito do Trabalho dos anos da crise aponta para a flexibilidade na gestão dos recursos humanos (interna) e na cessação do contrato de trabalho (externa), para a dinamização da contratação coletiva ao nível da empresa e para uma mais célere revisão das convenções coletivas de trabalho, de forma a assegurar às empresas – principais dinamizadoras da criação de emprego – as condições de competitividade necessárias à sua saúde económica e financeira.







Nota 2: artigo publicado na Revista "Actualidad€" da Câmara de Comércio e Indústria Luso Espanhola.

23 de julho de 2014

A penhora de salários

Nos últimos anos podemos identificar duas fases substancialmente distintas na nossa sociedade: o tempo do crédito fácil e do crescimento económico (aparente) e, mais recentemente, os dias da crise económica. Para uns vivemos acima das nossas possibilidades, para outros o aumento do crédito resultou de uma redução acentuada da exigência na avaliação do risco associada a intensas campanhas publicitárias. Independentemente das causas, vamos assumir que as famílias chegaram aos dias da crise com níveis de endividamento, no limite, proporcionais à sua capacidade de ganho.


Todavia, com o advento dos dias da crise verificou-se o aumento significativo do desemprego, o qual foi acompanhado por cortes salariais na parte da população que manteve o seu posto de trabalho. Seria, portanto, expectável que o endividamento se transformasse em sobre-endividamento e conduzisse, em primeiro lugar, a níveis apreciáveis de incumprimento e depois a um aumento do número de penhoras (em especial, de salários).


Neste quadro, importa conhecer os traços gerais do regime da penhora de salários.


Em regra, são impenhoráveis 2/3 da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado.


Esta impenhorabilidade refere-se à parte líquida, isto é, ao valor que será disponibilizado ao trabalhador, tendo em conta os "descontos legalmente obrigatórios" (por exemplo, a retenção na fonte e a quotização para a Segurança Social).


Todavia, esta insusceptibilidade de penhora conhece dois limites: (i) o limite máximo correspondente a 3 remunerações mínimas mensais garantidas (isto é, € 1.455,00); e (ii) o limite mínimo correspondente ao valor da remuneração mínima mensal garantida (isto é, € 485,00), quando o executado não tenha outros rendimentos.


Assim, deve ter-se presente que não é (absolutamente) verdade que a penhora só possa corresponder a 1/3 do salário mensal. Com efeito, nos salários mais elevados é possível penhorar uma parcela mais expressiva, desde que ao executado seja garantido o valor de € 1.455,00. Por seu lado, por razões de tutela da dignidade da pessoa humana, pode verificar-se, no limite, uma insusceptibilidade total de penhora nos salários mais baixos. Diga-se, aliás, que não é uma realidade pouco comum, se tivermos em conta que mais de 10% da população ativa recebe o "salário mínimo nacional".


Por fim, cumpre referir que o juiz pode, excecionalmente e a requerimento do executado, reduzir, por período que considere razoável, a parte penhorável dos rendimentos e mesmo, por período não superior a 1 ano, isentá-los de penhora. Para o efeito, o juiz deverá atender ao montante e à natureza do crédito em cobrança, bem como às necessidades do executado e do seu agregado familiar.


De referir que estes traços de regime não devem dispensar-nos de uma análise mais detalhada do caso concreto.

Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 15.7.2014.

Responsabilidade dos administradores pelas contraordenações laborais

O Tribunal Constitucional (TC) no seu mais recente acórdão (201/2014 de 3 de janeiro de 2014) emitiu uma decisão com a maior relevância para administradores, gerentes e diretores ao não reconhecer a inconstitucionalidade do n.º 3, do artigo 551.º do Código de Trabalho (2009).


De acordo com esta norma os administradores, gerentes e diretores são solidariamente responsáveis pelo pagamento de coimas que sejam determinadas por factos praticados pelas sociedades que administrem, independentemente de qualquer facto que lhes diga diretamente respeito. Ou seja, o gestor será responsável independentemente de ter sido o autor da infração, de lhe ser imputável a não satisfação do crédito de multa ou da sua situação patrimonial pessoal. Desta forma, o montante do pagamento da coima será aferido com base na valoração do comportamento da empresa (autora da infração) e da respetiva situação económico-financeira e não do comportamento pessoal ou da situação patrimonial do administrador, gerente ou diretor.


Na ponderação entre os valores consubstanciados nas normas contraordenacionais, e que na sua essência visam reprimir e prevenir a atuação dos agentes com vista à manutenção da ordem social, e o princípio da proibição constitucional de transmissibilidade da responsabilidade penal, em benefício da maior eficácia do sistema sancionatório contraordenacional, o TC privilegiou os primeiros.


Segundo o TC, a solução legal em apreço visa, através da assunção coerciva da responsabilidade pelo pagamento da coima, envolver os administradores, gerentes ou diretores na contraordenação laboral praticada pela empresa e, por essa via, assegurar não só o comprometimento ativo dos órgãos de gestão no cumprimento da legislação laboral, como uma maior eficácia na cobrança das coimas.


De referir que a responsabilidade solidária pelo pagamento da coima não isenta a empresa do pagamento da mesma. Isto é, após o pagamento, o administrador, gerente ou diretor pode exercer o seu direito de regresso contra a empresa a fim de ser reembolsado dos valores pagos. Todavia, esta solução não evita a afetação de bens próprios ao pagamento de uma dívida alheia, sem qualquer "garantia" de reembolso.


Esta decisão do TC coloca assim, novamente na ordem do dia, a necessidade de os administradores, gerentes e diretores, deterem pleno conhecimento dos normativos legais de natureza laboral a que as empresas que administram estão vinculadas e pugnarem ativamente pelo seu cumprimento, sob pena de verem comprometido o seu próprio património pessoal.


Por fim, devemos notar que este é um tema complexo e com diversas especificidades jurisprudenciais. Por exemplo, com respeito ao regime das infrações tributárias, o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 171/2014, declarou inconstitucional com força obrigatória geral a norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na parte que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores pelo pagamento de multas que sejam aplicadas à sociedade que gerem, quando hajam colaborado dolosamente na prática da infração.


Notas:


a) Em coautoria com Susana Morgado (Advogada Sénior da Gómez-Acebo & Pombo)

b) Artigo publicado no Jornal OJE de 10.7.2014



As transferências de local de trabalho

Podemos identificar três elementos-chave no contrato de trabalho com influência significativa na organização laboral do empregador e no "modus vivendi" do trabalhador, cuja modificação durante a execução do contrato deve obedecer a determinados critérios e limites: (i) a atividade contratada; (ii) a remuneração; e (iii) o local de trabalho. Abordaremos, hoje, a questão da alteração do local de trabalho.


O trabalhador deve, em princípio, exercer a atividade no local contratualmente definido, sem prejuízo das alterações por iniciativa do empregador ou do trabalhador.


O empregador pode transferir o trabalhador para outro local de trabalho, temporária ou definitivamente, desde que observe o procedimento adequado, nas seguintes situações: (i) em caso de mudança ou extinção, total ou parcial do estabelecimento onde aquele presta serviço; ou (ii) quando outro motivo do interesse da empresa o exija e a transferência não implique prejuízo sério para o trabalhador.  


No caso de transferência definitiva, o trabalhador pode resolver o contrato, com direito a compensação, se tiver prejuízo sério.


De acordo com a jurisprudência, o "prejuízo sério deve consubstanciar um dano relevante que não se reconduza a simples transtornos ou incómodos: torna-se mister que a alteração ordenada afecte, substancialmente e de forma gravosa, a vida pessoal e familiar do trabalhador visado"[Ac. STJ 25.11.2010 (Sousa Grandão)].


Assim, não constitui motivo bastante para a resolução do contrato a alteração da hora de saída de casa e a penosidade das viagens [Ac. STJ 25.11.2010 (Sousa Grandão)]. Com efeito, "o facto de com a mudança de local de trabalho o trabalhador passar a despender diariamente com as deslocações entre 1.00h a 1h15m e de perder uma situação de vantagem que resultava da relação de proximidade do anterior local de trabalho com a residência (almoçar em casa, dispor de mais tempo para a lide da mesma, e para descanso e acompanhamento familiar)" não constitui prejuízo sério [Ac. STJ 5.7.2007 (Sousa Grandão)].


Por seu lado, considerou-se que existia prejuízo sério no caso de mudança para um novo local de trabalho que ficava a cerca de 200 km de distância, visto que, à partida, não seria viável uma deslocação diária da residência para o novo local de trabalho e produziria uma alteração substancial da vida pessoal e familiar do trabalhador [Ac. STJ 12.2.2009 (Vasques Dinis) e Ac. STJ 7.11.2007 (Pinto Hespanhol)].


Em qualquer caso, o empregador deve custear as despesas do trabalhador decorrentes do acréscimo dos custos de deslocação e da mudança de residência, ou em caso de transferência temporária, de alojamento.


Por fim, cumpre referir a possibilidade de transferência a pedido do trabalhador vítima de violência doméstica, desde que seja apresentada queixa-crime e se verifique a saída da casa de morada de família no momento em que se efetive a transferência.


O empregador que disponha de outro estabelecimento pode, todavia, adiar a transferência com fundamento em exigências imperiosas ligadas ao funcionamento da empresa ou serviço, ou até que exista posto de trabalho compatível disponível. Ora, neste caso, o trabalhador pode suspender o contrato de imediato até que ocorra a transferência e solicitar a confidencialidade sobre os motivos que justificam essa alteração contratual.

Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 8.7.2014.


Sobre esta questão, pode ser consultado, ainda, o seguinte Acórdão:


- Ac. STJ 12.1.2006 (Pinto Hespanhol)

9 de julho de 2014

As portarias de extensão: novos critérios

A legislação laboral vive num clima de mudança permanente desde há cerca de 3 anos. Não surpreende, por isso, que na passada sexta-feira tenha sido publicado um novo diploma com relevância para a vida das empresas.

As convenções coletivas de trabalho (CCT) assumem a seguinte tipologia: (i) contrato coletivo de trabalho: convenção celebrada entre associação sindical e associação de empregadores; (ii) acordo coletivo de trabalho: convenção celebrada entre associação sindical e uma pluralidade de empregadores para diferentes empresas; e (iii) acordo de empresa: convenção celebrada entre associação sindical e um empregador para uma empresa ou estabelecimento.

A CCT obriga o empregador que a subscreve ou filiado em associação de empregadores celebrante, bem como os trabalhadores ao seu serviço que sejam membros de associação sindical celebrante (princípio da filiação). A CCT pode ser, ainda, aplicável quando o trabalhador não filiado em associação sindical escolha a CCT aplicável na empresa ou quando seja emitida uma portaria de extensão.

A portaria de extensão visa alargar o âmbito de aplicação de uma CCT ao setor de atividade ou ao setor profissional e deve ter em conta as circunstâncias sociais e económicas que a justifique, nomeadamente a identidade ou semelhança económica e social das situações no âmbito da extensão e da CCT a que se refere. A competência para a emissão da portaria de extensão cabe ao ministro responsável pela área laboral e, em caso de oposição por motivos económicos, cabe também ao ministro responsável pelo sector de atividade.

Em Outubro de 2012, no cumprimento de uma obrigação assumida no Memorando da Troika, o Governo definiu "critérios mínimos, necessários e cumulativos a observar no procedimento para a emissão de portaria de extensão". No essencial, o Governo auto vinculou-se a emitir portarias de extensão quando estivesse verificado um exigente critério de representatividade (a parte empregadora subscritora da CCT devia ter ao seu serviço, pelo menos, 50% dos trabalhadores do setor de atividade, no âmbito geográfico, pessoal e profissional de aplicação pretendido) com o objetivo de reduzir as portarias de extensão, relegando a negociação das condições de trabalho para o nível da empresa e maximizando, nesse aspeto, o papel do contrato de trabalho. O que veio a acontecer.

Com efeito, de acordo com o "Relatório Anual da Negociação Coletiva" da UGT, foram publicadas em 2010 116 portarias de extensão; e em 2013 apenas 9 portarias de extensão de CCT de 2011 e 2012, deixando de fora o alargamento das condições de trabalho de CCT publicadas nesse ano. Na ausência de portarias de extensão, verificou-se, naturalmente, a redução do número de trabalhadores abrangidos por CCT.

Ora, no passado dia 27 de junho, o Governo procurou flexibilizar as condições de emissão de novas portarias de extensão, através de um critério adicional: a parte empregadora subscritora da CCT deve ter um conjunto de associados constituído, pelo menos, por 30% de micro, pequenas e médias empresas, isto é, empresas que empreguem até 250 trabalhadores. Embora nos reportemos a dados do ano 2000, este critério pode representar 91% das empresas em Portugal. Dito de outro modo, as empresas com 250 ou mais trabalhadores não representavam, em 2000, sequer 1% das empresas, embora tivessem ao seu serviço cerca de 31% dos trabalhadores.

Em suma, esta medida pode levar a uma melhoria das condições de trabalho (em especial, dos salários) por força da negociação coletiva, escapando à vontade do empregador ou a critérios de produtividade.

Todavia, estão na "linha de montagem" dois diplomas que podem "recalibrar" o regresso ao "alargamento compulsivo" de CCT: a redução da sobrevigência e a possibilidade de suspensão da CCT em caso de crise da empresa (referidos no nosso artigo da passada semana).
Resta-nos aguardar pelos efeitos destas alterações normativas.

Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 1.7.2014.

Sobre esta questão vide:

- Professor Doutor Pedro Silva Martins (Professor no Queen Mary College, Universidade de Londres, ex-Secretário de Estado do Emprego 2011-2013): aqui e aqui


O absentismo laboral

O absentismo cria inúmeros problemas às organizações laborais, nomeadamente a redução da produtividade individual e coletiva, a sobrecarga dos colegas de trabalho presentes e a (potencial) perda de clientes. De acordo com um estudo da Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho, as taxas médias de absentismo variam entre 3% e 6% do tempo de trabalho e estima-se que o seu custo atinja cerca de 2,5% do PIB.



Em 2003, o Código do Trabalho criou a majoração do período mínimo anual de férias de até 3 dias em função das faltas verificadas no ano anterior. Em 2012, no seguimento de um Acordo de Concertação Social, foi decidida a sua eliminação, eventualmente devido aos seus escassos efeitos no combate ao absentismo laboral.



Em qualquer caso, dir-se-á que a primeira medida para controlar o absentismo laboral reside na implementação (obrigatória) do registo dos tempos de trabalho e no controlo regular das ausências ao serviço.



Com efeito o empregador deve manter o registo dos tempos de trabalho, incluindo dos trabalhadores que estão isentos de horário de trabalho, em local acessível e de modo a permitir a sua consulta imediata (nomeadamente pela Autoridade para as Condições do Trabalho). Este registo deve conter a indicação das horas de início e de termo do tempo de trabalho, bem como das interrupções ou intervalos que nele não se compreendam. No caso de trabalhador que preste trabalho no exterior da empresa, o empregador deve assegurar que este vise o registo imediatamente após o seu regresso à empresa ou envie o mesmo devidamente visado.



Em conformidade com o Código do Trabalho, considera-se falta a ausência do trabalhador do local em que devia desempenhar a atividade durante o período normal de trabalho diário. Em caso de ausência por períodos inferiores ao período normal de trabalho (por exemplo, durante a manhã ou tarde), os respetivos tempos são adicionados para determinação da falta. De referir que no caso de apresentação ao serviço com atraso superior a 60 minutos, o empregador pode recusar a prestação de trabalho durante todo o período normal de trabalho.



As faltas devem ser comunicadas ao empregador e, caso este o solicite, devem ser justificadas com prova do facto invocado (por exemplo, atestado médico). Caso não seja comunicada ou não seja feita prova do facto invocado, a falta será considerada injustificada, o que constitui uma violação do dever de assiduidade e determina perda da retribuição correspondente ao período de ausência, que não é contado na antiguidade do trabalhador.



Por outro lado, as faltas injustificadas constituem justa causa de despedimento quando: (i) determinem prejuízos ou riscos graves para a empresa (por hipótese, um cozinheiro que falte injustificadamente a uma festa de casamento, prejudicando irremediavelmente a realização do "copo de água"); ou (ii) atingem, em cada ano civil, 5 seguidas ou 10 interpoladas, independentemente de prejuízo ou risco.



De referir que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), num acórdão de 2.12.2010, considerou que as faltas injustificadas integram um comportamento ilícito, presumindo-se a culpa do trabalhador. Nesse caso, o STJ entendeu que havia justa causa de despedimento, visto que a trabalhadora registou 12 faltas injustificadas durante um ano civil.



Ainda sobre este tema, o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), num acórdão de 25.3.2010, acolheu o entendimento que, no caso de faltas injustificadas que determinem prejuízos ou riscos graves para a empresa, o prazo de prescrição começa a correr a partir do momento em que as faltas ocorreram; ao invés, no caso de contabilização do número de faltas no ano civil, o prazo de prescrição só começa a correr no termo do ano civil em que as faltas tiveram lugar.



O controlo dos tempos de trabalho pode não ser o meio mais eficaz para reduzir o absentismo laboral, mas é, sem dúvida, um instrumento de gestão muito relevante.



Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 24.6.2014.

25 de junho de 2014

Novas alterações às leis do trabalho em perspetiva

No passado dia 5 de junho, o Governo apresentou na Assembleia da República duas novas propostas de alteração das leis do trabalho, as quais se encontram em fase de apreciação pública até ao próximo dia 27 de junho.

A primeira medida cuida dos seguintes aspetos: (i) a suspensão do período de negociação da convenção coletiva de trabalho; (ii) a redução dos prazos de sobrevigência e caducidade da convenção coletiva de trabalho; e (iii) a possibilidade de suspensão, total ou parcial, da convenção coletiva de trabalho, por acordo entre o empregador e as associações sindicais outorgantes em situação de crise empresarial, por motivos de mercado, estruturais ou tecnológicos, catástrofes ou outras ocorrências que tenham afetado gravemente a atividade normal da empresa e essa medida seja indispensável para assegurar a viabilidade da empresa e a manutenção dos postos de trabalho.

Devemos referir que a sobrevigência reduz (substancialmente) os efeitos da caducidade de uma convenção coletiva de trabalho, visto que esta continua a produzir efeitos jurídicos após o seu termo para permitir a sua revisão ou substituição sem quebra das condições de trabalho.

As convenções coletivas de trabalho têm assumido uma vocação de perenidade e reforçam a, proclamada, rigidez do regime laboral português. A proposta de lei em apreço pretende diminuir a força vinculativa destes instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, através da redução do período de sobrevigência e da sua suspensão total ou parcial em situação de crise empresarial.

A segunda medida visa prolongar, até 31 de dezembro de 2014, a suspensão das disposições de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho (v.g., contratos coletivos de trabalho ou acordos de empresa) e das cláusulas de contratos de trabalho, que tenham entrado em vigor antes de 1 de agosto de 2012 e que disponham sobre (i) os acréscimos remuneratórios devidos por trabalho suplementar superiores aos previstos no Código do Trabalho e sobre (ii) a retribuição do trabalho normal prestado em dia feriado, ou descanso compensatório por essa mesma prestação, em empresa não obrigada a suspender o funcionamento nesse dia.

Numa primeira e perfunctória análise, diríamos que a medida mais inovadora se prende com a suspensão, total ou parcial, de convenções coletivas de trabalho em situação de crise empresarial.

De referir que não se trata de uma solução revolucionária se atendermos a experiências de outros países. Admitimos, aliás, que o legislador tenha buscado inspiração no "procedimento de descuelgue" que vigora em Espanha, o qual consiste num mecanismo extraordinário que permite não aplicar as condições de trabalho previstas em convenções coletivas de trabalho, quando a empresa se encontre numa situação económica difícil. Desde a Reforma de 2012, para além do regime salarial, a possibilidade de não aplicação de uma convenção colectiva de trabalho passou a abranger também as matérias dos tempos de trabalho e da definição das funções atribuídas aos trabalhadores.

Em suma, estas medidas visam transformar as convenções coletivas de trabalho em instrumentos de adaptabilidade da legislação laboral às necessidades das empresas e dos setores de atividade. Cumpre aguardar pelo debate durante o período de apreciação pública e pelos seus resultados.

Nota: artigo publicado no Jornal OJE de 19.6.2014.

As propostas de lei podem ser consultadas aqui e aqui.